A Atualidade da Barbárie e Arquitetura da Destruição


Fala aí, galera!

Bom, para continuar nossos estudos, estou postando uma nova apostila. Como a mesma é longa, decidi além de postar sua versão integral aqui, eu a fragmentei em quatro partes, aqui, aqui, aqui e aqui. Mas, notem que a primeira e a segunda partes são as mais importantes.

A ATUALIDADE DA BARBÁRIE

 

Marildo Menegat

 

Introdução

 

    A virada para o século XX foi comemorada pelos marxistas como a entrada para o século do socialismo. No filme Rosa Luxemburgo, da alemã Margaret von Trota, há uma cena que é bem representativa desse “espirito”, na qual o SPD alemão comemora o reveillon de 1900 em um grande baile e , na entrada do novo século , brindam ao futuro do socialismo e da humanidade. O otimismo era tanto que não restavam dúvidas , e estas quando existiam , eram de outra natureza, diziam respeito mais dos caminhos ao socialismo. A social democracia alemã, força hegemônica da II Internacional, estava imersa em longos e profundos debates, que dificilmente tinham uma infra-estrutura na consciência real do proletariado daquele país, sobre o desenvolvimento contínuo e a passagem pacifica do capitalismo ao socialismo e, ou, a necessidade da ação espontânea e revolucionária do proletariado. A afirmação de Engels de “socialismo ou barbárie”, soava como algo abstrato, distante e pouco provável.. A certeza clara e evidente era de que o socialismo estava cada vez mais na aurora dos povos, pelo menos da Europa, onde haviam fortes partidos social democratas encrostados no coração do proletariado.

 

    Em meio a este otimismo, o capitalismo passava por uma restruturação, a partir das novas técnicas da chamada Segunda Revolução Industrial, com mudanças produtivas e a verticalização da organização do capital em trustes, cartéis, monopólios etc. Enfim , era o inicio de uma nova fase da história deste modo de produção: o imperialismo, e o conseqüente fim do capitalismo da livre concorrência. Travou-se em torno deste processo um intenso debate acerca da atualidade das conclusões de Marx n’ O Capital.. Para Bernstein, um dos principais intelectuais do SDP, o marxismo era uma ciência, e como tal, sujeita a equívocos. Os fenômenos daquela época apontavam, segundo ele, para a negação de certas afirmações de Marx, como por exemplo a da crescente pauperização do proletariado, o que lhe dava razão para um revisionismo do conjunto da teoria, inclusive, e principalmente, a política, na qual pretendia ressaltar os aspectos parlamentares da via ao socialismo.

 

    O resumo estratégico desta posição pode ser entendido pela seguinte passagem de Hilferding em sua obra O Capital Financeiro: “Esto no significa más que lo seguinte: que a nuestra generación se le plantea el problema de transformar con la ayuda del Estado, con la ayuda de la regulación social conciente, esta economia organizada y dirigida por los capitalistas en una economia dirigida por el Estado democrático.”(In: MUÑOZ, 1984, p. 182).

 

    Por outro lado, Rosa Luxemburgo na sua obra A Acumulação do Capital, tentava confirmar e atualizar as conclusões de Marx, no sentido de legitimar teoricamente a necessidade da ação das massas no processo de transição do capitalismo ao socialismo. Os anos que se seguem a este debate criaram sisões incontornáveis dentro da II Internacional, mas não alteraram, no entanto, o otimismo anterior.

 

    A eclosão da I Guerra Mundial levou o capitalismo e a democracia liberal a um descrédito generalizado, entre amplas massas no mundo inteiro. Parecia que o fim do capitalismo estava próximo. As disputas inter-imperialistas, que levavam a um enfraquecimento do sistema enquanto um todo e, o alto grau de organização do proletariado, faziam supor que o otimismo da virada do século era mais que justificado e atual. Lenin e Rosa Luxemburgo trataram de denunciar e a se contrapor a posição da maioria do SDP e da II Internacional, considerando-a chauvinista em relação a guerra  e coerente com a via pacifica ao socialismo, que àquela altura dos acontecimentos, para eles, tratava-se de uma autentica traição ao século do socialismo. Eles acabaram por fim concluindo que a II Internacional estava demasiadamente empenhada em dar uma sobre- vida ao capitalismo.

 

    A Revolução Russa de 1917 é o balanço real deste debate teórico e político e das expectativas em relação ao futuro da humanidade. Para o capitalismo ainda imerso em tremenda crise, a ameaça vermelha à leste tornou-se um fator agravante para sua estabilização. A questão operária e o medo dos bolcheviques foi, nas décadas que antecederam a II Guerra Mundial, um ponto de pauta obrigatório para os países industrializados. O apoio ao Exército Branco, na guerra civil soviética de 1918 a 23, e a derrota da insurreição espartaquista na Alemanha, em 1919, são algumas demonstrações desta preocupação. Aqui não há dúvidas que as mudanças estratégicas entre os diversos partidos operários do mundo levaram a um enfraquecimento da sua força revolucionária e consequentemente do otimismo em relação ao futuro socialista em plena crise autofágica do capitalismo. Se, como afirmara Lukács, o leninismo é a consciência da atualidade da revolução proletária, a social democracia e o stalinismo, que surgiu no desenvolvimento de alguns vícios do marxismo e, principalmente, do leninismo, são a sua recusa.

 

    As destruições do movimento operário nas décadas de 20 e 30 são quase universais - vão desde a ascensão de Stalin na URSS até a do fascismo em diversos países da Europa ocidental. Neste momento o capitalismo demonstra toda a sua irracionalidade e paradoxal insensatez, pois de um lado consegue uma certa estabilidade sobre os cadáveres das vítimas de Stalin, Hitler e cia, e por outro lado, a crise do mercado mundial conclamava para mais um acerto de contas. (Neste contexto surgiu uma mudança do raio de influência do marxismo nos países da Europa ocidental, junto a intelectualidade, que serviu para revitalizar diversos aspectos desta teoria, abandonados nas perspectivas dos debates anteriores, principalmente nas suas implicações filosóficas e éticas. Aqui se inserem o existencialismo francês, a Escola de Frankfurt e as frentes antifascistas no mundo inteiro).

 

    Ao fim da II Guerra a postura de Stalin permaneceu anti-revolucionária, o que facilitou uma nova onda de expansão da economia capitalista. O otimismo era agora adiado para um tempo indeterminado. Num momento de plenas liberdades democráticas nos principais países industrializados, o movimento e os partidos operários reorganizam-se a luz das tradições que melhor se enquadravam na estabilidade capitalista. Se isso permitiu diversos governos social democratas e a presença de fortes partidos comunistas, a verdade é que o otimismo já estava, na Europa, com a sua cabeça coberta com a última pá de cal.

 

    Da Europa , onde a divisão das esferas de influência feitas em Ialta por Stalin, Roosevelt e Churchill, permitiu um aumento geográfico considerável do socialismo prussiano - de cima para baixo -, acomodando a sua atualidade, foi então no mundo colonial que o otimismo renasceu: na China em 1949, no Vietnã entre 1965/74, em Cuba em 1959 e na África na década de 70. Nos países semi-industrializados do terceiro mundo, estes anos comportaram movimentos que foram do nacionalismo autoritário ao nacional-populismo, tendo em todos estes casos ocorrido situações de instabilidade política imensas, que colocavam em xeque, na imanência do seu desenvolvimento, a nova ordem pós-guerra. A Guerra Fria, no entanto, tratava agora de ser um eficiente instrumento de controle da ameaça vermelha no terceiro mundo, em tempos de refluxo do fascismo. Quando as revoluções no terceiro mundo adquiriram contornos de massa, armadas de paixão e foices, os EUA encarregaram-se de continuar a guerra, agora localizada, em tempos de refluxo da guerra generalizada. Um outro elemento de dominação e estabilidade do capitalismo neste período foi a “indústria cultural”, que combinou elevadas doses de propaganda pró-capitalista com um entretenimento passivo e irracional.

 

    Ao final do século XX, podemos dizer que o otimismo morreu em seu último reduto. O terceiro mundo agoniza barbaramente na mais densa nuvem de ceticismo. Na Europa Oriental o socialismo, na sua versão bastarda e menos generosa de uma onda de otimismo jamais vista na humanidade, recebe dos seus filhos overdoses de liberalismo econômico e de individualismo. O neoliberalismo, forma hegemônica atual da nova fase do capitalismo iniciada com a terceira revolução tecno-cientifica, ainda na década de 40, demonstra-se mais violento e destruidor da sociabilidade do que nas suas formas anteriores, desprezando o ser humano como nunca se viu . Ele tem diante de si uma avenida indefesa de cadáveres. O século XXI é o da atualidade da barbárie.

 

 

O Conceito de Barbárie em Marx

 

 

    Para Marx o conceito de barbárie refere-se, principalmente, à incompatibilidade entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas. Está inscrito então, em sua concepção de desenvolvimento da história. Existem vários momentos, na sua obra, aos quais Marx refere-se explicitamente às condições mórbidas de sociabilidade devido a decomposição das forças produtivas e a não superação das relações sociais. A primeira referência, dentro de uma ordem histórica, é à queda do Império Romano, feita na Ideologia Alemã . Dizem Marx e Engels nesta obra: “nos últimos séculos do Império Romano em declínio e a conquista pelos próprios bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas” (grifos meus). Neste contexto Marx e Engels ressaltam a destruição das forças produtivas acumuladas como ponto central da caracterização de barbárie, em meio a relações de produção que haviam esgotado-se. No inicio, a Idade Média não significou nenhum avanço em relação ao período anterior. Sem entrarmos em detalhes históricos da época, apenas queremos observar a ausência de um sujeito político - e militar, que era então uma das principais formas da política -, capaz de transformar aquelas relações de produção preservando as forças produtivas acumuladas. O conceito de barbárie tem origem exatamente nesse elemento de destruição das conquistas dos bárbaros, ele dá conta de um momento histórico cuja as saídas comportam necessariamente uma regressão, mesmo que momentânea.

 

    A segunda referência a idéia de barbárie na história , é relativa a agonia do Antigo Regime e a ascensão revolucionária da burguesia. São indicações importantes a este respeito as feitas no Manifesto do Partido Comunista, e no prefácio à primeira edição alemã d’ O Capital. Tomemos uma passagem deste último para ilustrarmos as diferenças com a anterior:

 

    “Além das misérias modernas, oprime-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes do fato de continuarem vegetando modos de produção arcaicos e ultrapassados, com o séquito de relações sociais e políticas anacrônicas. Somos atormentados não só pelos vivos, como também pelos mortos”(MARX, 1985, p.12).

 

    Nesta passagem o conteúdo da barbárie está relacionado com o não amadurecimento pleno de um modo produtivo, no caso o capitalismo, sobre o tecido em decomposição do feudalismo. Não é a destruição das forças produtivas, como na passagem da Ideologia Alemã, mas o ainda insuficiente desenvolvimento destas, o que caracteriza este segundo uso da idéia de barbárie. Marx pensa aqui o processo histórico do século XIX, onde persistiram, lado a lado, em formações sociais e econômicas heterogêneas, o poder econômico burguês e o domínio político da aristocracia decadente. Estas relações anacrônicas são as razões dos tormentos. Esta segunda idéia do conceito dá conta de um processo no qual existe um sujeito político e social capaz de transformar a sociedade, e que possui em suas mãos o poder de prosseguir o desenvolvimento das forças produtivas , evitando uma regressão como no caso anterior. Em síntese poderíamos dizer que as idéias que variam em ambas as situações é esta capacidade subjetiva articulada e organizada para a superação das relações sociais e políticas então vigentes. Ambas no entanto são momentos ‘mórbidos’ para as respectivas sociedades.

 

    Uma terceira idéia do conceito de barbárie em Marx podemos encontrar na seguinte passagem do Manifesto: “Nas crises declara-se uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas anteriores - a epidemia de sobreprodução. A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie...E porque? Porque a sociedade possui civilização em excesso” (MARX, 1982, p.112. Grifos meus).

 

    A categoria crise domina a idéia de barbárie nesta época histórica. O próprio Marx assinala ironicamente a sua diferença com as passagens anteriores, trata-se de excesso de civilização, esta entendida como o desenvolvimento das forças produtivas que são constantemente revolucionadas, como parte do processo de valorização e acumulação do capital. Para que esse processo não seja interrompido, é necessário que de tempos em tempos destruam-se parte destas levando então a sociedade a momentâneas regressões. A face bárbara do capitalismo não é mais do que um elemento necessário para a sua continuidade, diferente dos períodos anteriores, é a primeira vez que a destruição das forças produtivas faz parte do próprio modo de produção e isto fica demonstrado pela irracionalidade desta esfera da vida social que tende a se espalhar para todas as restantes. A valorização do capital, como forma abstrata da sociabilidade, torna-se cada vez mais, pela necessidade da sua realização, uma forma irracional desta, logo, sob o ponto de vista do conjunto da humanidade e não apenas do capital - bárbara. Marx considerava quase inevitável que, durante as contradições geradas pelo processo de acumulação e suas crises periódicas, se formaria uma força política e social capaz de dar um fim a estas regressões e tormentos: o proletariado revolucionário. De todos os momentos do conceito de barbárie vistos até agora, é neste onde residiriam em tese, as melhores condições para a superação definitiva das contradições, sem regressões do nível de desenvolvimento das forças produtivas acumuladas. Analisaremos a seguir algumas problematizações em relação a força política e social que poderia levar as crises a uma superação definitiva, estas complementam a primeira parte deste trabalho, numa perspectiva agora interna, baseada também em pistas deixadas por Marx.

 

 

Barbárie e Alienação

 

 

    A indicação do conceito de barbárie apenas pela destruição das forças produtivas não é mais compatível com o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. Desde a crise de 1929, as crises tem perdido a sua intensidade destrutiva concentrada, e após a II Guerra, esta transferiu-se para doses menos visíveis que se espalham pelo cotidiano em inúmeras formas de violência, e não tanto sobre as forças produtivas (apenas parcialmente no caso da destruição da natureza), mas em outras formas de manifestações e ameaças. Para além da destruição, o desenvolvimento das forças produtivas tem se caracterizado em maior proporção pelo aumento “do poder social, isto é, a força de produção multiplicada que surge pela cooperação dos diferentes indivíduos condicionada na divisão do trabalho” (MARX, 1982, p.26). O desenvolvimento do mercado, como o primeiro momento de um poder social não controlado pela humanidade, mas o inverso, adquiriu proporções alarmantes na sua dilatação para esferas da vida social que transcendem a sua produção material. Articulado a este processo, as formas alienadas de produção, em que a desubstancialização do ser humano torna-o uma caricatura das suas forças essenciais, para usarmos uma expressão cara ao Marx dos Manuscritos de 1844, estão também dilatadas e universalizadas. O ser humano não se reconhece em si mesmo além da esfera cada vez mais restrita da sua reprodução. Há a cristalização de uma forma de existência social, que apesar das suas contradições, às incorpora como parte constitutiva, reduzindo assim a capacidade de sua superação. A imobilização do sujeito criada pela própria lógica de valorização do capital, que como já afirmamos, realiza-se com uma face crescentemente bárbara, o impele a uma aceitação passiva, criando com isto um circulo vicioso, do qual não saímos, apenas entramos em níveis mais aprofundados de destruição. Ao invés de uma relação de domínio sujeito-objeto, este poder social crescente criou uma competição entre o sujeito e as forças objetuais produzidas por ele, e nesta fase, estas operam na sua destruição, o que é um paradoxo, pois caso isto realize-se totalmente é o fim de ambos. Estamos entrando num terreno bastante delicado, já que envolve entre outras coisas, a discussão sobre uma inversão perversa da dialética, o que coloca no limite, no aspecto aqui investigado, a inversão dos saltos progressivos, assim como da relação sujeito-objeto.

 

    Podemos nos perguntar, e esta é a razão da nossa investigação, se o desenvolvimento imanente das forças produtivas e a sua contradição com as relações de produção seriam condições suficientes para esperarmos um salto histórico para uma sociedade futura mais generosa. Partimos do principio que este salto exigiria uma intervenção prática e consciente de um sujeito social, que desde o inicio poderia realizar níveis crescentes de controle sobre as forças sociais unidas. Ora, acima observamos o inverso, e isso nos leva a crer que este sujeito substancializado não pôde formar-se em oposição ao poder objetual, o que arrastou consigo as possibilidades utópicas. A perda do poder do sujeito, sob o comando estranho do mundo das mercadorias, reduz as suas possibilidades de transformação desta sociedade, uma vez que isto pressuporia a existência de uma vontade livre que pretende afirmar-se no seu exercício soberano sobre os objetos de sua criação. Mas então, de onde surgiriam as razões para uma transformação da atual forma de sociabilidade?

 

    Na Ideologia Alemã Marx sugere duas premissas práticas para a superação, dentro da sua concepção de desenvolvimento histórico:

 

    “Para que ela se torne um poder insuportável é necessário que tenha criado uma grande massa da humanidade ‘destituída de propriedade’ e ao mesmo tempo em contradição com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um grande aumento das foças produtivas”.

 

    De certa forma o poder já é bastante insuportável, no entanto ele diluiu a consciência desta contradição, por uma razão inscrita em sua lógica de funcionamento, evitando assim que esta contradição viesse a se tornar um pressuposto da sua destruição. Ocorre com mais freqüência o inverso, ou seja, o poder insuportável torna-se onipotente: ou ele e a destruição, ou apenas a destruição. Estamos muito provavelmente nas proximidades do que Foucault chamou de a morte do homem, as forças humanas essenciais foram recolhendo-se para uma disciplina unidimensional, na qual a vida submeteu-se de tal forma à sobrevivência, que esta passou a emergir como um salto daquele processo, um ponto da regressão ampliada que agora começamos a divisar. Do homem sobrevivido, assujeitado em torno aos tormentos do aumento vertiginoso dos poderes objetuais sobre sua livre escolha, temos ao final, um ser adaptado às formas germinais da barbárie.

 

    Este processo é irreversível?

 

 

Revolução e Barbárie

 

 

    Novamente na Ideologia Alemã , Marx e Engels voltam ao conceito de barbárie, para articula-lo agora à necessidade da revolução. Dizem: “No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estágio no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraças, que já não são forças de produção mas de destruição...” Esta é a senha para as situações revolucionárias. Insistimos anteriormente com dois elementos problematizadores desta concepção: a incorporação da barbárie pela valorização do capital; e a destruição das “forças essenciais humanas”, o que torna esta saída um beco. A concepção de Marx e Engels leva-os a elaborar uma teoria revolucionária que pressupõe um sujeito organizado, que pode nos indicar pistas criativas, na medida em que as seguimos problematizando-as em seus aspectos mais comprometidos com os resultados de nossa critica até este momento. Podemos dessa maneira responder provisoriamente a pergunta feita ao final da outra parte: o tema central para a superação desta fase histórica é o da criação de um sujeito não apenas transposto do mundo do trabalho, mas alargado a todas as frestas onde permanecem pontos não coisificados da vida social, sendo provavelmente este segundo elemento cada vez mais importante.

 

    O questionamento da teoria da revolução de Marx e Engels foi posto pela própria história do século XX. Na primeira parte deste trabalho sugerimos que a não realização do que chamamos de uma onda de otimismo acarretou no enfraquecimento de toda uma concepção desta, e que o desenvolvimento posterior do capitalismo e as novas culturas libertárias vieram a dificultar e alargar, respectivamente, aquela perspectiva anterior. Para clarearmos esta questão, devemos partir do que Marx e Engels conceberam sobre a revolução e o sujeito desta. A consciência do fim do caráter civilizatório do capitalismo ocupa uma função pedagógica, a de colocar a necessidade histórica da revolução como caminho para sua superação. Esta consciência está articulada a uma compreensão das contradições da sociedade capitalista, da qual deriva a consciência do proletariado, como herdeiro dos interesses universais da humanidade. A revolução que levaria o proletariado ao poder diferiria radicalmente de outras revoluções, como por exemplo as burguesas, que já haviam transformado as forças produtivas, antes das relações de produção. A burguesia criou, é verdade, valores e uma visão de mundo própria - isto é, um “poder espiritual” -, mas o seu poder persuasivo determinante residia no poder do mercado, do fetiche da mercadoria e do dinheiro. A revolução socialista deve criar um novo modo produtivo, e daí o seu caráter civilizatório, no entanto o proletariado parte de uma situação social distinta da burguesa, por não possuir o poder econômico. As forças produtivas continuam desenvolvendo-se sob o controle privado, e o proletariado somente pode oferecer-lhe uma resistência política e “um poder espiritual ”. Assim este poder do proletariado, entendido como uma revolução do modus vivendise seus valores, é uma exigência de caráter estratégica, na medida em que constrói no seu processo de negação do capitalismo, uma nova forma de sociabilidade. Não é aqui que reside o enfraquecimento do marxismo clássico. Apenas as correntes economicistas não entendem a importância deste momento da afirmação do poder espiritual. O problema reside na afirmação da consciência de classe como mola impulsionadora deste processo, o que é insuficiente e equivocado quando colocado com exclusividade ou numa relação de primazia hierárquica.

 

    Para o marxismo este novo modus vivendis fica excessivamente preso à consciência de classe e a analise do mundo do trabalho, ou seja, a nova forma de sociabilidade funda-se restritamente numa ontologia social do trabalho. Se pensarmos, como dizem Marx e Engels, que a “revolução ... consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade” (Grifos meus), para que isso de fato se realize, é necessário ir além de uma análise critica do mundo do trabalho. A sociabilidade articulada em torno da valoração do capital exclui milhões de indivíduos de sua lógica social (principalmente na sua forma atual, iniciada a partir da terceira revolução tecno-cientifica), assim como, articula-se com inúmeras outras formas de opressão e preconceitos desvalorativos de grupos sociais, etnias, gênero etc. Além disso a sociedade capitalista não é apenas uma grande fábrica ou banco. A sua forma coisificada de ver o mundo espraia-se a todas as fronteiras da existência social e do indivíduo, vão para além da esfera da produção (chegando, por exemplo, à linguagem). A consciência social dominante pode ser uma mistificação das “verdadeiras” relações de produção, mas, o ser social que se funda em torno da sua lógica tende a incorporar esta consciência, falsa sob o ponto de vista de uma “nova fundação social”, mas verdadeira sob o ponto de vista de seus interesses individualistas e imediatos. O seu horizonte de sociabilidade é a valorização do capital, e tudo o que a compõem, a sua consciência assume então a forma morta-viva de sobrevivência nestas condições. As possibilidades de uma revolução ficam então limitadas pelo muro deste horizonte: sempre teme-se o pior, e quanto mais o pior se realiza menos pode-se evita-lo. (Temas como a revolução enquanto processo e a sua relação com as reformas surgem destas, entre outras questões como correlação de forças etc.).

 

    A consciência de classe é então uma forma critica de contraposição prática a sociabilidade fundada na valorização do capital. Ela é um ponto de resistência contra a coisificação da produção material da vida social. Porém, no capitalismo da atualidade da barbárie, a exclusão de milhões de seres humanos desta esfera do mundo social cria outras formas de sociabilidade que devem ser incorporadas na criação do novo poder espiritual, assim como formas de opressão independentes desta sociedade que devem ser superadas para que de fato possa-se presenciar a nova fundação da sociedade. A consciência de classe é então uma forma muito restrita - e imprecisa, dentro das atuais mudanças do mundo do trabalho - para impulsionar este processo. Existem dois fenômenos históricos que lhe reduzem ainda mais a capacidade, não apenas de compreensão, mas também de coesão das forças sociais dispostas a fazer uma revolução: a aristocratização de setores do proletariado e a sua incorporação na defesa dos interesses da lógica valorativa do capital nos países de primeiro mundo; e as posturas da social democracia e do stalinismo, que auxiliaram enormemente na morte da esperança otimista de uma sociedade refundada. Desta maneira, a idéia de Marx e Engels , de que “cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu próprio propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade ... a dar às suas idéias a forma de universalidade”( MARX op. cit. p.40), é uma idéia hoje, quando ancorada no proletariado, fraca e sem capacidade persuasiva. Isto não quer dizer que o mundo do trabalho não continue sendo uma das fontes fundantes da nova sociabilidade, e de que o proletariado não seja uma força essencial das revoluções nestes marcos históricos, apenas afirma que as bases do novo poder espiritual devem ser refeitas em um campo que de fato instaure “o seu domínio ... sobre uma base mais ampla do que a do até aí dominante”. Todas as revoluções, como as classes sociais que a sustentaram e a consciência da sua atualidade histórica, foram relativas, e modificaram-se profundamente dentro de uma mesma época. O que nos separa de Marx e as primeiras experiências revolucionárias do proletariado são as transformações do século XX, e não é possível ignorar este “detalhe”.

 

    Ao afiançarmos o núcleo de um possível “poder espiritual” nas condições atuais, que não opera mais com o proletariado como força hegemônica, não estamos mudando nossa posição anterior sobre as dificuldades de recuperação das forças humanas essenciais, apenas buscamos o novo topos do qual podem vir a projetar-se, sem que nisso implique qualquer teleologia. Ao comentarmos as dificuldades da consciência de classe no mundo contemporâneo, estamos de fato problematizando o trabalho como ontologia social restrita. A sociabilidade articulada em torno da valorização do capital é a primeira a criar meios de produção através de maquinas, a concentrar a vida social em cidades, a afastar em definitivo os laços do ser humano com a natureza, de tal forma que esta lhe parece hostil e distante. Estes elementos produzem uma vida social cuja a base é mais do que nunca uma mediação complexa, centrada no poder simbólico, na linguagem, etc... Um artificio humano, esta é a identidade da comunidade em seus novos laços. Criar sua identidade social a partir apenas da relação com a natureza, sendo esta realizada pela mediação da máquina e em contextos intensivos, afastados do seu locus, é um desafio que supera a determinação das formas de relações de produção, e muito provavelmente possa vir a intervir na concepção das forças produtivas. Outra questão que foge da consciência de classe como núcleo hegemônico de um poder espiritual é a necessidade de preservar a diferença como um elemento que não conforma obrigatoriamente contradições, ou seja, nem todas as diferenças na sociedade configuram pólos opostos de uma unidade que devem ser superados a partir da recíproca negação. O próprio Marx afirma na Introdução à Critica da Economia Política, que apenas a realização do socialismo permite a plena manifestação da individualidade rica. Para isso é preciso tematiza-la para além do trabalho. Grupos sociais como as mulheres, gays, negros, judeus etc., não pretendem a sua incorporação no mundo valorativo do trabalho, nem são possíveis, muito provavelmente, valores universais a todos os grupos sociais além do permanente direito a diferença e sua manifestação, que é a democracia.

 

    Por fim, o afastamento em relação aos laços naturais exigem a reelaboração do lugar da natureza, tanto como elemento material imprescindível do metabolismo do ser humano com esta, como também do paradigma da racionalidade cientifico-tecnológica. Seria possível uma relação que não se baseie no agir instrumental? As sociedades desenvolvidas, e os nichos com padrões próximos nas subdesenvolvidas, possuem hábitos calcados em desperdícios de recursos naturais que são impossíveis de serem universalizados sem que haja um colapso ecológico. A indústria também opera com padrões de desperdício e poluição inaceitáveis em escala generalizada. A destruição deste meio de vida e de produção material da vida social é mais um acréscimo contemporâneo ao conceito de barbárie, e em alguns casos, também irreversível.

 

Rio de Janeiro, dezembro de 1994

 

A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

Theodor Adorno

Adorno – A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente Impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade.

Becker — Quando formulamos a questão da barbárie de um modo tão amplo, então, é evidente, é muito fácil angariar apoio, porque obviamente todos serão de imediato contrários à barbárie. Mas se quisermos testar como a educação pode interferir nesse fenômeno ou agir profilaticamente para evitá-lo, parece-me necessário caracterizar com mais precisão o que é a barbárie e de onde ela surge. Neste caso precisamos indagar se uma pessoa em todos os sentidos compensada, temperada, esclarecida, livre de agressões e, portanto, não motivada à capacidade da agressão, constitui em si um produto almejável da sociedade.

Adorno — Eu começaria dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade. A obviedade a que o senhor se referiu deixa de sê-lo quando observamos as concepções educacionais vigentes, sobretudo as existentes na Alemanha, em que são importantes concepções como aquela pela qual as pessoas devam assumir compromissos, ou que tenham que se adaptar ao sistema dominante, ou que devam se orientar conforme valores objetivamente válidos e dogmaticamente impostos. Pela minha visão da situação da educação alemã, o problema da desbarbarização não foi colocado com a nitidez e a gravidade com que pretendo abordá-lo aqui. Isto basta para colocar em discussão uma tal aparente obviedade.

Becker -—- Talvez por um momento fosse necessário não se restringir à Alemanha e perguntar se este problema não se coloca de um modo semelhante no mundo inteiro. Embora uma determinada forma da pedagogia de orientação idealista seja tipicamente alemã neste contexto, os perigos da barbarização, mesmo que em roupagens diferentes, também se colocam em outros países. Se quisermos combater este fenômeno por meio da educação, deverá ser decisivo remetê-lo a seus fatores psicológicos básicos...

Adorno — Não apenas aos psicológicos, mas também aos objetivos, que se encontram nos próprios sistemas sociais.

Becker — Eu concebo a psicologia também como um fator objetivo.

Adorno —— Sim, porém entendo como sendo fatores objetivos neste caso os momentos sociais que, independentemente da alma individual dos homens singulares, geram algo como a barbárie.

Neste momento estou mais inclinado a desenvolver essas questões na situação alemã. Não por pensar que não sejam igualmente agudas em outros lugares, mas porque de qualquer modo na Alemanha aconteceu a mais horrível explosão de barbárie de todos os tempos, e porque, afinal, conhecemos a situação alemã melhor a partir de nossa própria experiência viva.

Becker — Havendo consciência de se tratar de um fenômeno geral, podemos começar a partir do exemplo alemão. E como o senhor afirma com muita procedência, existem muitos motivos para tanto. Na questão "O que é possível á educação?" sempre nos defrontamos com o problema de até que ponto uma vontade consciente introduz fatos na educação que, por sua vez, provocam indiretamente a barbárie.

Adorno —-- Mas também o contrário. Quando o problema da barbárie é colocado com toda sua urgência e agudeza na educação, e justamente em instituições como a sua, que desempenha um papel-chave na estrutura educacional da Alemanha hoje, então me inclinaria a pensar que o simples fato de a questão da barbárie estar no centro da consciência provocaria por si uma mudança. Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que —-- e isto é Freud puro —- justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.

Becker —— Por outro lado, poderíamos dizer que se exagerarmos a ênfase à desbarbarização, então contribuímos para evitar a mudança da sociedade. Ajudamos eventualmente também a evitar um desenvolvimento em direção a "novas fronteiras", como se diz na América. Servimos, por assim dizer, à realização do lema "A calma é a obrigação primordial da cidadania"; e penso que o decisivo estaria em determinar o conteúdo preciso da desbarbarização em face de muitas exigências ingênuas de tolerância e de calma. Estou convencido que isto não significa para o senhor um desenvolvimento hostil a mudanças. Mas seria decisivo determinar com precisão o que a desbarbarização deva ser neste contexto.

Adorno — Concordo inteiramente com o senhor quanto a que o que imagino ser a desbarbarização não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma restrição das afeições fortes, e nem mesmo nos termos da eliminação da agressão. Neste contexto parece-me permanecer totalmente procedente a proposição de Strindberg: "Como eu poderia amar o bem, se não odiasse o mal".

De resto, o conhecimento psicológico defendido como teoria justamente por Freud, com cujas reflexões acerca dessas questões ambos nos revelamos impressionados, encontra-se em concordância também com a possibilidade de sublimar de tal modo os chamados instintos de agressão, acerca dos quais inclusive ele manifestou concepções bastante diferentes durante sua vida, de maneira que justamente eles conduzam a tendências produtivas. Portanto, creio que na luta contra a barbárie ou em sua eliminação existe um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro, se partíssemos de um conceito formal de humanidade. Mas já que todos nós nos encontramos no contexto de culpabilidade do próprio sistema, ninguém estará inteiramente livre de traços de barbárie, e tudo dependerá de orientar esses traços contra o princípio da barbárie, em vez de permitir seu curso em direção à desgraça.

Becker — Gostaria de colocar uma questão muito precisa: recentemente um político afirmou que os distúrbios de rua em Bremen por causa dos aumentos tarifários dos transportes seriam uma comprovação da falência da formação política, pois a juventude se manifestou por meio de formas bárbaras contra uma posição pública, acerca de cuja justeza poderia haver várias visões, mas que não poderia ser respondida mediante o que seriam confessadamente intervenções bárbaras.

Adorno — Considero esta afirmativa citada pelo senhor como sendo uma forma condenável de demagogia. Se existe algo que as manifestações dos secundaristas de Bremen demonstra, então é precisamente a conclusão de que a educação política não foi tão inútil como sempre se afirma; isto é, que essas pessoas não permitiram que lhes fosse retirada a espontaneidade, que não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente. A forma de que a ameaçadora barbárie se reveste atualmente é a de, em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se precisamente atos que anunciam, conforme sua própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas.

Becker — Contudo precisamos tentar imaginar a perspectiva em que se situam os jovens. Onde adquirem os critérios para decidir o que é bárbaro? Freqüentemente se distingue hoje em dia entre a violência contra os homens e a violência contra as coisas. Distingue-se entre a violência que é praticada, e aquela que é apenas ameaça: fala-se de ausência de violência em ações em si mesmas proibidas. Por assim dizer, desenvolve-se uma graduação da ausência efetiva e da ausência aparente de violência, e a partir deste padrão a questão da barbárie passa a ser avaliada por muitas pessoas. Se entendo bem, a barbárie parece ter um outro sentido para o senhor. A violência pode ser um sintoma da barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo. Na realidade, ao senhor interessa uma outra coisa, o que, na minha opinião, ainda não ficou claro.

Adorno — Bem, parece ser importante definir a barbárie, por mais que me desagrade. Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista portanto a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie.

Becker — O senhor diria, se entendo bem, que, por exemplo, não é barbárie a demonstração de jovens ou adultos baseada em considerações racionais, ainda que rompa os limites da legalidade. Mas que é barbárie, por outro lado, a intervenção exagerada e objetivamente desnecessária da policia numa situação destas.

Adorno — Certamente penso assim. Se examinarmos mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos que de modo algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente refletidos. Se neste caso esta reflexão é correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os acontecimentos são entendidos, na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é ofendido e agredido num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir desses exemplos tão atuais, a diferença entre o que é e o que não é barbárie.

Becker — Entretanto, em minha opinião as reflexões por si só não garantem um parâmetro frente à existência da barbárie. Enquanto dirigente governamental, por exemplo, posso me dispor ao uso de armas nucleares em algum lugar da Terra com base em considerações estritamente racionais, e este ato pode ser bárbaro, apesar do procedimento abrangente, controladíssimo, estritamente racionalizado e não subordinado a emoções graças à utilização de computadores. As reflexões e a racionalidade por si não constituem provas contra a barbárie.

Adorno — Mas eu não disse isto. Se me recordo — e sou um pai de família cuidadoso — me referi também em nossa discussão a reflexões sobre fins transparentes e humanos, e não a reflexões em abstrato. Pois, e nisto o senhor está coberto de razão, a reflexão pode servir tanto à dominação cega como ao seu oposto. As reflexões precisam portanto ser transparentes em sua finalidade humana. É necessário acrescentar estes considerandos.

Becker — Chegamos a uma questão muito difícil: como educar jovens para que efectivamente apliquem essas reflexões a objetivos humanos, ou seja, isto é factível para os jovens? Eu diria que pode muito bem ser possível, mas representa um rompimento com um conjunto de idéias que se tornaram muito simpáticas. Por exemplo, uma proposição básica da pedagogia recorrente na Alemanha, a de que a competição entre crianças deve ser prestigiada. Aparentemente aprende-se latim tão bem assim por causa da vontade de saber latim melhor do que o colega na carteira à nossa direita ou à nossa esquerda. A competição entre indivíduos e entre grupos, conscientemente promovida por muitos professores e em muitas escolas, é considerada no mundo inteiro e em sistemas políticos bem diversos como um princípio pedagógico particularmente saudável. Sou inclinado a afirmar — e me interessa saber sua opinião a respeito — que a competição, principalmente quando não balizada em formas muito flexíveis e que acabem rapidamente, representa em si um elemento de educação para a barbárie.

Adorno — Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. Quando muito é possível educar desta maneira esportistas, mas não pessoas desbarbarizadas. Em minha própria época escolar, lembro que nas chamadas humanidades a competição não desempenhou papel algum. O importante era realizar aquilo que se tinha aprendido; por exemplo refletir acerca das debilidades do que a gente mesmo faz; ou as exigências que colocamos para nós mesmos ou à objetivação daquilo que imaginávamos; trabalhar no sentido de superar representações infantis e infantilismos dos mais diferentes tipos.

Abstraindo brincadeiras que transcorreram paralelamente, em minha própria formação não me lembro de que o chamado impulso agônico tenha desempenhado aquele papel decisivo que lhe é atribuído. Na situação escolar, esta é uma daquelas mitologias que continuam lotando nosso sistema educacional e que necessitam de uma análise científica séria.

Becker — Alegra-me muito o fato de o senhor ter freqüentado uma escola que lhe foi tão agradável, e alegra-me a nossa concordância tão profunda acerca da recusa das idéias exageradas de competitividade. Creio que tanto no seu tempo como hoje a massa dos professores continua considerando a competitividade como um instrumento central da educação e um instrumento para aumentar a eficiência. Eis um aspecto em que pode ser feito algo de fundamental em relação à desbarbarização.

Adorno — Isto é, desacostumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotoveladas constituem sem dúvida uma expressão da barbárie. No sistema educacional inglês — por menos que nos agrade o momento de conformismo que ele encerra, o objetivo de se tornar brilhante, o que de fato não é uma boa máxima, e que no fundo é hostil ao espírito — encontra-se na idéia de fair play momentos de uma consideração segundo a qual a motivação desregrada da competitividade encerra algo de desumano, e nesta medida há muito sentido em se aproveitar do ideal formativo inglês o ceticismo frente ao saudável desejo do sucesso.

Becker — Eu até iria mais além. Creio que erramos em insistir demasiado nesta idéia ainda hoje no esporte. Numa sociedade gradualmente liberada dos esforços físicos, em que a atividade física assume uma importante função lúdica e esportiva na escola que é muito mais importante do que jamais ocorreu na história da humanidade, ela poderia provocar conseqüências anímicas equivocadas por meio da competição. Neste sentido creio que um ponto decisivo consiste também em diminuir o peso das formas muito primitivas e marcadas da competitividade na educação física.

Adorno — Isto levaria a um predomínio do aspecto lúdico no esporte frente ao chamado desempenho máximo. Considero esta uma inflexão particularmente humana inclusive neste âmbito dos exercidos físicos, a qual, segundo penso, parece ser estritamente contrária às concepções vigentes no mundo.

Becker — Isto vale para todas as suas afirmações acerca da competição, pois evidentemente poder-se-ia defender a tese de que é preciso se preparar pela competição na escola para uma sociedade competitiva. Bem ao contrário, penso que o mais importante que a escola precisa fazer é dotar as pessoas de um modo de se relacionar com as coisas. E esta relação com as coisas é perturbada quando a competição é colocada no seu lugar. Nestes termos, creio que uma parte da desbarbarização possa ser alcançada mediante uma transformação da situação escolar numa tematização da relação com as coisas, uma tematização em que o fim da proclamação de valores tem uma função, assim como também a multiplicidade da oferta de coisas, possibilitando ao aluno uma seleção mais ampla e, nesta medida, uma melhor escolha de objetos, em vez da subordinação a objetos determinados preestabelecidos, os inevitáveis cânones educacionais.

Adorno — Talvez eu possa voltar mais uma vez a certas questões fundamentais na tentativa de uma desbarbarização mediante a educação. Freud fundamentou de um modo essencialmente psicológico a tendência à barbárie e, nesta medida, sem dúvida acertou na explicação de uma série de momentos, mostrando, por exemplo, que por intermédio da cultura as pessoas continuamente experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que acabam se traduzindo em agressão. Tudo isto é muito procedente, tem uma ampla divulgação e poderia ser levado em conta pela educação na medida em que ela finalmente levar a sério as conclusões apontadas por Freud, em vez de substitui-las pela pseudo-profundidade de conhecimentos de terceira mão.

Mas no momento refiro-me a uma outra questão. Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacifica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir.

Bem, na medida em que tais nexos, como o da falência da cultura, a perpetuação socialmente impositiva da barbárie e este mecanismo de deslocamento que há pouco descrevi são levados de um modo abrangente à consciência das pessoas, seguramente não se poderá sem mais nem menos mudar esta situação, porém será possível gerar um clima que é incomparavelmente mais favorável a uma transformação do que o clima vigente ainda hoje na educação alemã. Esta questão central para mim é decisiva; é a isto que me retiro com a função do esclarecimento, e de maneira nenhuma à conversão de todos os homens em seres inofensivos e passivos. Ao contrário: esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente apenas urna forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

Becker — Concordo inteiramente. Ainda mais quando eu temia nas suas exposições iniciais que a desbarbarização deveria começar, por assim dizer, com uma diminuição da agressão. O senhor já havia respondido com a citação de Strindberg. Mas penso que precisamos nos proteger de equívocos. Certamente o senhor conhece as propostas um pouco surpreendentes de Konrad Lorenz, que desenvolveu com suas exposições acerca da agressão o ponto de vista de que, se quisermos preservar a paz mundial, será necessário abrir novos campos às agressões dos homens. E nessas considerações cabe, por exemplo, o campo esportivo há pouco descrito pelo senhor ocupando o lugar da guerra a ser evitada. Acredito que — por mais interessantes e estimulantes que sejam as observações de Konrad Lorenz acerca das agressões entre os animais — a conclusão a que se chega nestes termos, ou seja, a recomendação de agressões de alívio, é muito perigosa.

Adorno — Ele conclui assim por razões de darwinismo social. Também a mim ele parece extraordinariamente perigoso, porque implica de uma certa maneira reduzir os homens ao estado de seres naturais.

Becker — Não creio que esta seja a opinião de Lorenz.

Adorno — Não, não é. Mas neste modo de pensar, como também no de Portmann, seguramente existem certas tendências desse tipo. Com a educação contra a barbárie no fundo não pretendo nada além de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com rudeza ou se comporta de um modo brutal com uma moça; quero que por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física.

Becker — Quanto à aversão eu seria cuidadoso

Adorno -—- Então pergunto se não existem situações em que sem violência não é possível. Eu diria que neste caso trata-se de uma sutileza. Mas creio que antes de falarmos sobre as exceções, sobre a dialética existente quando em certas circunstâncias a antibarbárie requer a barbárie, é preciso haver clareza de que até hoje ainda não despertou nas pessoas a vergonha acerca da rudeza existente no principio da cultura. E que somente quando formos exitosos no despertar desta vergonha, de maneira que qualquer pessoa se torne incapaz de tolerar brutalidades dos outros, só então será possível falar do resto.

Becker — Bem, a palavra "vergonha" é muito mais do meu agrado, do que a palavra anterior, "aversão". Existe uma literatura ampla a este respeito que — como é do seu conhecimento — conduz a luta contra a barbárie por meio de uma forma de descrição da barbárie que pode ser apreciada. E na aversão exagerada frente à barbárie pode haver elementos análogos. Nestes termos considero mais procedente a sua afirmação de que é preciso gerar uma vergonha. Além disto eu diria que a educação (e por isto o termo "esclarecimento" talvez ainda precise de esclarecimentos) nessas questões deveria se dar com as crianças ainda bem pequenas. É necessário que determinados desenvolvimentos ocorram num período etário — como diríamos hoje — da pré-escola, onde não se verificam apenas adequações sociais decisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas. E é preciso reconhecer com bastante franqueza que em primeiro lugar sabemos pouco acerca de todo este processo de socialização, e também ainda temos pouco conhecimento cientificamente comprovado acerca de que ações têm quais efeitos nesta idade. No fundo, o importante é deixar as agressões se expressarem nesta idade, mas ao mesmo tempo iniciar a sua elaboração. Mas é isto precisamente que coloca as dificuldades maiores ao educador, deixando assim bem claro que no referente a esse problema a formação de educadores encontra-se engatinhando, se é que chegou a tanto.

Adorno — Corno alguém que pensa psicologicamente, isto parece-me ser quase uma obviedade. Isto deve-se a que a perpetuação da barbárie na educação é mediada essencialmente pelo princípio da autoridade, que se encontra nesta cultura ela própria. A tolerância frente às agressões, colocada com muita razão pelo senhor como pressuposto para que as agressões renunciem a seu caráter bárbaro, pressupõe por sua vez a renúncia ao comportamento autoritário e à formação de um superego rigoroso, estável e ao mesmo tempo exteriorizado. Por isto a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização. Mas eu seria o último a minimizar essas questões, pois os pais com que temos de lidar são, por sua vez, também produtos desta cultura e são tão bárbaros como o é esta cultura. O direito de punição continua sabidamente a ser, em terras alemãs, um recurso sagrado, de que as pessoas dificilmente abrem mão, tal como a pena de morte e outros dispositivos igualmente bárbaros.

Becker — Se concordamos acerca de como é decisiva a educação na primeira infância, então provavelmente também concordamos em relação a que a autoridade esclarecida, tal como o senhor a formula, não representa uma substituição da autoridade pelo esclarecimento, mas que neste âmbito e justamente na primeira infância precisa haver também manifestações de autoridade.

Adorno — Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais "dão uma palmada" na criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização.

Becker — Isto está inteiramente correto. Creio que concordamos quanto a que, nessa primeira infância e no sentido da desbarbarização, a criança não pode ser nem submetida autoritariamente à violência, nem submetida à insegurança total pelo fato de não se oferecer a ela nenhuma orientação.

Adorno ---- Contudo, creio que justamente as crianças que são anêmicas no sentido das concepções vigentes dos adultos e também dos pedagogos, as chamadas plantas de estufa, com as quais foi exitosa já precocemente como que uma sublimação da agressão, serão também como adultos ou como adolescentes aqueles que são relativamente imunes em face das agressões da barbárie. O importante é precisamente isto. Acredito ser importante para a educação que se supere este tabu acerca da diferenciação, da intelectualização, da espiritualidade, que vigora em nome do menino saudável e da menina espontânea, de modo que consigamos diferenciar e tornar tão delicadas as pessoas no processo educacional que elas sintam aquela vergonha acerca de cuja importância havíamos concordado.

Tradução: Wolfgang Leo Maar


TROPA DE ELITE: O SADISMO A SERVIÇO DA SOCIEDADE

SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES

Segundo comemorou a “Veja”, em reportagem de 15 páginas, na edição 2.030, o maior mérito de “Tropa de Elite” é que ao lado de “Cidade de Deus” o filme se constitui numa exceção dentro da cinematografia brasileira, porque não aborda a realidade pela “ótica do bandido”.

Daí deriva, inclusive, ainda segundo a revista, o seu êxito de público, pois o espectador não quer saber como, nem por que, os monstros são criados. O que lhe interessa é ver que serão castigados e exterminados, para que ele possa, enfim, usufruir o merecido sono tranqüilo.

Moral da história: quem quiser fazer sucesso filmando no Brasil deve renunciar à crítica e especializar-se em copiar os filmes americanos do gênero, onde os “justiceiros” não vêem outra alternativa para defender a sociedade que não a de passar por cima das leis e barbarizar os criminosos, o que acabam fazendo, via de regra, com requintes de sadismo.

O problema desse enfoque é que, além de ser tipicamente fascista, vende uma ilusão ao espectador menos atento: a de que os monstros deixarão de assombrá-lo se forem tratados com um teor de crueldade e covardia igual ou maior ao que devotam às suas vítimas.

Não vão.

Primeiro porque enquanto a explosiva combinação de miséria, desigualdade social, desestruturação familiar, abandono e ignorância, que engendra a criminalidade em escala nas grandes cidades brasileiras, não for erradicada a fábrica de bandidos estará despejando diariamente no mercado novos e mais abundantes modelos. É natural que “Veja”, no intuito de fortalecer sua posição de porta-voz dos que amealham fortunas produzindo e aprofundando essa situação, procure ocultar tal fato. Mas nem por isso ele deixa de ser óbvio.

Segundo porque há uma enorme diferença entre tratar o criminoso com a dureza correspondente ao seu grau de periculosidade e tratá-lo com perversidade. A perspectiva de um tratamento perverso, longe de intimidá-lo e dissuadi-lo, apenas o torna mais desesperado e brutal. E, o que é ainda mais grave, reduz a zero a autoridade moral de quem apela para os métodos de “conduta informal” – eufemismo empregado por “Veja”, conforme o padrão da CIA, para designar a tortura e execução de prisioneiros.

Que autoridade pode ter um torturador ou um policial que mata a sangue frio bandidos rendidos? Que diferença esse tipo de detrito humano acha que tem do homicida sádico? Como ele, também está agindo à margem da lei, com a diferença de que é pago para respeitá-la - condição primeira de quem tem como profissão fazer com que os outros a observem. Aliás, para conservar um mínimo de respeito às suas pessoas, essas almas penadas costumam ocultar as façanhas até dos vizinhos e mesmo dos próprios familiares.

Que sono tranqüilo poderia ter o nosso espectador se a autoridade que deveria protegê-lo baixasse ao nível dos monstros que o atormentam? De que serviria uma autoridade despida de legitimidade moral? Até na guerra, já dizia Bonaparte, os fatores morais estão para os materiais assim como três está para um.

“Tropa de Elite” é contido em relação aos modelos americanos da estética da barbárie nos quais se inspirou. Produzidos aos borbotões por Hollywood, a partir da escalada no Vietnã, esses filmes tem o objetivo de levar o espectador a considerar natural que num conflito todo e qualquer meio seja empregado contra o inimigo. A idéia subjacente é a de que já que o adversário é invariavelmente um bárbaro que não se detém diante de nada o remédio é sermos mais bárbaros do que ele, do contrário a derrota será líquida e certa. O bom mocinho não é mais aquele que oferece ao bandido a chance de sacar primeiro. É o que o impede de fazê-lo atirando antes, de preferência pelas costas.

Em “Tropa de Elite” não há, como em “Direito de Matar-3”, a profusão de execuções - mais de uma centena - realizadas pelo “justiceiro” que diante da inércia policial resolve limpar o bairro. Há apenas duas. Numa, porém, o traficante, já ferido, rendido e sabendo que iria ser morto, pede que não lhe atirem na cara, “para não estragar o velório”. O vice-mocinho, num plano bem marcado, troca então sua arma por uma calibre 12 e dispara – adivinhem aonde. Uma edificante execução, para americano nenhum botar defeito.

Torturas também não há muitas, mas é sintomático que os heróis do Bope – Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar - considerem válido empregar a asfixia por saco plástico não só contra traficantes, mas também contra mulher de traficante, para que esta delate o seu esconderijo. A extensão do tratamento perverso a inocentes, honra seja feita, não é advogada em quaisquer casos, somente naqueles em que a recusa a colaborar com as diligências torne isso inevitável. Quanta magnanimidade!

Tudo se explica, segundo o filme, porque na Polícia Militar só há duas alternativas: “tornar-se corrupto ou assumir a guerra”. E guerra para eles é assim que se trava.

Um ex-capitão do Bope, que participou da confecção do roteiro de “Tropa de Elite”, disse que por se tratar de uma obra de ficção houve exageros e na realidade as coisas não se passam exatamente do jeito que foram apresentadas.

Esperamos que sim e que o macabro símbolo do batalhão - real e não imaginário, a caveira com as pistolas substituindo as tíbias e o punhal atravessado - não passe de uma bazófia de mau gosto.

O fato é que quando a autoridade policial acha bonito apresentar-se diante da sociedade com um símbolo que tomou emprestado aos bandidos ela corre o risco de confundir-se com eles e pode, mais dia menos dia, se ver na desagradável contingência de ter que acertar contas com a lei.

E nessa hora, podem estar certos: “Veja” e outros que açularam seus baixos instintos não vão aparecer em sua defesa. Que o digam os azes da Scuderie Le Coq.


Undergångens arkitektur

Gênero: Documentário

Duração: 121 minutos

Lançamento: 1989

Produção: Alemanha

Narração: Bruno Ganz

Classificação etária: 14 anos

 

Ficha Técnica

Direção, produção, roteiro, edição e trilha sonora: Peter Cohen

Fotografia: Mikael Cohen, Gerhard Fromn, Peter Ostlund

Trilha Sonora: Hector Berlioz

 

 

O Filme

 

Arquitetura da Destruição está consagrado internacionalmente como um dos melhores estudos já feitos sobre o nazismo no cinema. O filme de Peter Cohen lembra que chamar a Hitler de artista medíocre não elimina os estragos provocados por sua estratégia de conquista universal. O veio artístico do arquiteto da destruição tinha grandes pretensões e queria dar uma dimensão absoluta à sua megalomania. Hitler queria ser o senhor do universo, sem descuidar de nenhum detalhe da coreografia que levava as massas à histeria coletiva a cada demonstração.

O nazismo tinha como um dos seus princípios fundamentais a missão de embelezar o mundo. Nem que, para tanto, destruísse todo o mundo.

 

Curiosidades

 

Vale ressaltar que Adolf Hitler era, ele mesmo, um apreciador das possibilidades do cinema. Tanto que contratou a cineasta alemã Leni Riefenstahl para realizar filmes de propaganda sobre o III Reich. Leni acabou realizando, entre outros, um dos maiores clássicos do documentário mundial, O Triunfo da Vontade (1935), onde mostrava convenção anual do partido nazista em Nurembergue, em 1934. Execrável do ponto de vista ideológico e humanitário, o cinema de Leni acabou por se tornar admirável do ponto de vista estético.

 

Sinopse

 

O filme inicia com uma tomada aérea, colorida, lenta, de uma bela cidadezinha na Alemanha. A voz calma, começa a contar (em alemão) que, no seu início, o nazismo era visto como uma ideologia pura, de sérias restrições sexuais: as senhoras mais velhas, no interior do país, diziam que era difícil ser nazista.A partir desta introdução, o documentário Arquitetura da Destruição, utiliza apenas imagens de arquivo para contar a sua história. Logo ficamos sabendo que não apenas Hitler (um pintor fracassado e grande interessado em arquitetura) tinha arroubos artísticos: grande parte do primeiro escalão nazista também os tinha. São mostradas as pinturas feitas por Hitler em Viena; é comentado o amor que ele tinha por Wagner, assim como a sua vontade de transformar Linz, sua cidade natal, em grande centro cultural. O documentário passa então ao cerne do ideal artístico nazista: o desejo do Führer de embelezar o mundo.

O médico nazista, por exemplo, não fazia mais parte de uma classe que buscava a preservação da vida acima de tudo, mas alguém que, para preservar a beleza, era incumbido de eliminar os fracos e deformados: criou-se para isto, inclusive, um programa de assassinatos por gás letal, o Programa T4. A arte moderna (cubismo e dadaísmo, por exemplo) era considerada uma arte degenerada, e as deformações vistas nos quadros de vanguarda eram, na mentalidade nazista, semelhantes às deformações das pessoas deficientes físicas e mentais.

Por outro lado, a arte promovida por Hitler era baseada na antiguidade greco-romana - mostrando sobretudo corpos nus perfeitos, assim como paisagens bucólicas e felizes cenas familiares. Hitler promovia exposições anuais de arte nazista - e comprava, inclusive, grande parte dos quadros expostos. Dentro deste mesmo ideal de beleza, tanto a higiene pessoal como a limpeza dos locais de trabalho eram incentivadas.

O interesse de Hitler por arquitetura era enorme: ele fazia inclusive esboços de obras monumentais que seriam construídas. Berlim, por exemplo, seria totalmente remodelada, e faria de Paris "uma sombra" da capital alemã. Além disso, ele ficava horas e horas discutindo arquitetura com os principais arquitetos alemães, principalmente com o seu ministro Albert Speer - o Führer despendia um tempo imenso com esta atividade até mesmo em seu bunker, em 1945 (quando os aliados já estavam às portas de Berlim). A própria casa de Hitler, nos Alpes, foi construída segundo seus próprios esboços - com resultados amadorísticos, segundo o documentário.

Dentro da obsessão do Führer pela antiguidade greco-romana também se insere a escravização a que ele fez submeter os povos eslavos. Segundo o documentário, a guerra nazista era uma guerra moderna com objetivos antigos. E, assim como os romanos eliminaram completamente do mapa a cidade de Cartago, Hitler queria apagar qualquer vestígio da capital russa, Moscou: seu desejo era construir uma represa que fizesse a cidade toda submergir.

Os judeus, obviamente, também não faziam parte do "ideal de beleza nazista". Documentários alemães da época mostravam judeus na Europa Oriental mal-vestidos, pobres, sujos e afirmava-se que, "ao contrário da aparência dos ocidentalizados judeus alemães, esta era a verdadeira face dos judeus, prontos para eliminar a Alemanha". Segundo os nazistas, os judeus, como os ratos, também transmitiam doenças (no caso, deixando doente a alma alemã), se multiplicavam rapidamente e não traziam nada de bom.

O mesmo produto usado em desinsetização, o zyclon-b, acabou sendo utilizado nas câmeras de gás para eliminação de judeus. Na ideologia doentia dos alemães da época, os judeus eram inimigos reais da Nação Alemã, e sua eliminação era fruto da necessidade de limpeza - o morticínio, inclusive, passou dos fuzilamentos para as câmeras de gás por este ser um processo mais limpo.

Arquitetura da destruição termina de maneira quase surrealista: é filmados (na atualidade e a cores) um quarto com pinturas com retratos dos principais dirigentes nazistas. Estes quadros, apreendidos pelos Aliados foram mostrados ao público, décadas após o final da guerra. A câmera, lentamente e em um único plano, vai filmando os retratos dentro do quarto.  O narrador, com a mesma voz desapaixonada que empregara durante todo o filme, conclui que, na verdade, o Nazismo não tinha objetivos políticos mas sim estéticos: e, em nome desta visão estética do mundo, foram eliminadas pessoas inocentes que não se enquadravam no ideal de "beleza" nazista. Na verdade, conclui Arquitetura da destruição, não foram os inimigos do regime nazista os eliminados, mas sim civis inocentes assassinados por forças militares.

Ensaio sobre o filme “Arquitetura da Destruição”

 Leonardo da Silva de Assis

        No filme Arquitetura da Destruição, observa-se quão importante é para a sociedade a manutenção de sua memória – artística, histórica, entre outras – através de museus e repositórios de cultura. A prática de criar ambientes que congregam diversas formas artísticas de expressão do ser humano materializa conceitos presentes em anseios sociais.

É de fundamental importância a presença de museus em nossas vidas, pois representam características de povos e culturas em diferentes períodos de nossa história. O ato de manter viva a memória para futuras gerações, estabelece uma idéia de tempo relacionando passado, presente e futuro.

No filme, pudemos observar essa presença temporal nos museus da Alemanha. O Estado Alemão, sob o comando de Hitler, destruiu obras de artes que não compactuavam com seu regime. Atitude que objetivava alcançar um ideal: supremacia da raça ariana, em detrimento as demais.

Com essas observações, a sociedade busca em museus uma representação presente/passada/futura do meio social que a envolve. Portanto, o museu é gerador de tendências, mudanças e ideologias.

Atitudes como a do governo alemão, destruição de objetos artísticos contrários ao regime vigente, não são absurdas se comparadas aos dias atuais. Muitas exposições de arte são introduzidas à população com fins comerciais e ideológicos, indo ao encontro de objetivos particulares.

Portanto, é de profunda importância a função do museu em sociedade. Pode ele ser gerador de conhecimentos, conceitos, mantenedor de ordens sociais e políticas, levando até a destruição de vidas como apresentadas no filme.

Referências bibliográficas

 

DELEUZE,. Foucault. São Paulo, Editora Brasiliense.

MARX – ENGELS. "Ideologia Alemã", in: Obras Escolhidas vol. I .Moscou, Edições Progresso.

"Manifesto do Partido Comunista", in: Obras Escolhidas vol.I . Moscou, Edições Progresso.

MARX. "Manuscritos Econômicos e Filosóficos", in: FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores.

"Para a Crítica da Economia Política (Introdução)" In Os Pensadores. São Paulo, Editora Abril Cultural.

( 1985) "O Capital", vol. I , in Os Economistas. São Paulo, Editora Nova Cultural.

MUNÕZ, Jacobo. Lecturas de Filosofía Contemporánea. Barcelona, Editorial Ariel.

ASSIS, Leonardo da Silva de. Ensaio sobre o filme “Arquitetura da Destruição”. São Paulo, Escola de Comunicação e Artes.

 

Referência videográfica:

ARQUITETURA da destruição. Direção: Peter Cohen. Suécia, 1992.

 

 Um grande abraço e até nosso próximo encontro!

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