Revelações


Nada como um editor ou uma editora competente. Uma pessoa muito querida que eu chamo de amiga, Eddie, editou um de meus contos favoritos e que eu havia escrito para a minha noiva: Revelação. Devo confessar que ao reler o conto, fiquei estupefato com os erros ali contidos. Mas nada que um boa ajuda não resolva. Obrigado Eddie, por sua amizade e dedicação.

 

Com vocês, Revelações.

 

(Escrito ao som de Combatiente, da banda Maná)


Combatiente - Maná

 

A visão escura não o deixava entender onde estaria. Sua mente confusa não se lembrava sequer quem seria ele próprio. O formigamento trouxe a percepção do que seria seu corpo, mas algo estava diferente. Após esfregar os olhos, procurando trazer a visão da realidade, ele ficou observando suas próprias mãos, tentando entender de onde vinha aquela sensação estranha. Parecia-lhe ter controle total sobre seu corpo, mas a sensação que tinha era de que sua extensão ia além de seus membros, chegando ao ambiente em volta; como se o todo pudesse ser moldado à sua vontade de alguma forma.

Entretanto ele percebe que não está sozinho. Uma voz metálica, estranha, soava ao longe, parecendo-lhe chamar o nome. Ele, ainda confuso, procurava entender porque daquela denominação, com som de ar passando em um encanamento de alumínio ou qualquer outro metal, soava inteligível aos seus ouvidos como um chamado. A voz era firme e reconfortante, mas dava-lhe a impressão de ordem; sua língua não era natural, mas totalmente compreensível.

Agora ele percebe a desolação que há no ambiente em que se encontra. Ao mesmo tempo familiar e reconhecível, mas também estranho e quase onírico. Um enorme deserto de imensas proporções; terra plana, toda coberta de dunas de areia trazidas pelo vento. Mas ao virar-se para a direção onde surgiu a voz estranha, ele percebe que, em meio à desolação, há uma multidão reunida. Como falanges militares, ela se reunia em imensos grupos, separados aparentemente por alguma hierarquia incompreensível. Todos estavam nus e armados com grandes cimitarras, longas lanças e escudos redondos, caminhando em direção ao horizonte. Mesmo à distância que estava, podia-se ver a luz dourada que era refletida pelos ornamentos de ouro de suas armas. As nuvens do céu moviam-se como que vivas, emoldurando o céu, quase como uma tempestade com vontade própria. O sol transpunha seu obstáculo sem esforço. Seu brilho transmitia uma radiação de calor e alegria, mas não era incômodo como as regiões desérticas, que sua quase inexistente lembrança poderia trazer. No entanto, era de uma luz imensamente maior do que poderia lembrar e, impressionantemente, não lhe cegava. Caminhando cambaleante, quase que se adaptando às pernas que pareciam não ser suas, ele vai em direção à multidão. Interrompido em sua sofrida caminhada, por um vulto que cortou sua fronte com um vôo rasante, teve sua visão tomada por um tom rubro de sangue escorrendo e cobrindo seus olhos. Caiu por terra de joelhos, ouvindo novamente a voz metálica:

— Mohammed! Agora tens o selo! Levanta, pois chegou a hora de teu Jihad!

Limpando seus olhos com suas mãos cheias de areia, que transformavam sua visão em uma massa incômoda e arranhadora, ele vislumbra algo que lhe traz terror e conforto ao mesmo tempo. Suas crenças se fazem verdadeiras pela matéria. A alguns centímetros do chão, plana um ser que ele acredita ser um anjo. Com o que seria o rosto coberto pelo capuz de um manto, a figura se estende imponente à sua frente. Um homem de compleição física impressionante, com mais de dois metros de altura e que parece, não voar, mas flutuar no ar, visto que ele mal batia suas asas de imensa envergadura para manter-se planando.

— Tiveste fé e serás recompensado. Mas a hora das trombetas de Allah chegou! Coloca-te em teu posto, e veste-te de tua fé, para que possa ser guiado ao teu destino! Se credes, vai e caminha com os teus! Mohammed, chegou tua hora!

— Mas quem és tu, ser de luz?

— Aqui não há títulos, filho do Homem. Caminharemos juntos, e combateremos o Inimigo, como irmãos.

— E o que faço para caminhar contigo?

— Crê! Como nunca antes, deposita toda tua força em tua fé! Serás a espada do Senhor! Nasceste com esta missão; retornou dos mortos para cumpri-la. Oh! Olha, olha, filho do Homem! A tua retaguarda chegou!

Tomado ainda pelo espanto, vira-se de modo quase instintivo, vendo uma nova legião de homens chegando onde estava. Mas, estes eram diferentes. Eles vinham de olhos fechados, e suas vozes em oração pareciam poder ser ouvidas a quilômetros de distância. Estes vestiam robes brancos, e não tinham nada em suas mãos, deixando-as apertadas, juntas ao rosto. Seguiam um grupo de anjos, que em fila, pareciam direcionar a caminhada deles

— Veste-te de tua fé, e vá com os teus! — Disse-lhe o anjo, antes de alçar vôo em direção ao céu tempestuoso.

Novamente, tomado pelo espanto e temor do desconhecido, agora percebe que o que se junta e se move acima de sua cabeça, não são nuvens, mas sim anjos. Dos mais variados tipos, com suas vestes simples e suas peles metálicas, um sem número de asas sobrevoam aqueles que se juntam em terra. Brandindo, o que aos seus olhos humanos pareciam ser lâminas de fogo, voavam também em direção ao horizonte.

Apesar do movimento frenético e do som de bater de asas e orações que tomavam seus ouvidos, ele sentiu uma paz extrema. Abaixou sua cabeça e fechou os olhos, agradecendo ao seu Deus por ter sido escolhido para aquele momento.

— Não, não meu Deus! Nosso Senhor! – Ele disse a si mesmo, em voz baixa.

Naquele momento, voltou a sentir um formigamento em seus membros, mas desta vez, acompanhado de um peso estranho. Ao abrir os olhos, deparou-se com uma daquelas cimitarras e um escudo em suas mãos, mas as armas não eram as detentoras do peso que sentia, mas suas próprias mãos e o poder que sua fé parecia imbuir a elas. Percebeu que seu corpo não mais era controlado por neurotransmissões em sinapses ocorridas em seu cérebro, mas por sua fé. Fé verdadeira. Sabia que se sua fé falhasse, estaria perdido. Mas, qual seria esta perdição? Morte eterna? Não sabia. A única certeza que tinha, era que o vazio que um dia tomava seu coração, em sua existência mortal, já não mais existia. Com a coragem que invadiu seu coração, saiu correndo em direção as falanges que se formavam à sua frente. Uma outra multidão era vista, mesmo que como alguns pontos vindos de diversas direções, que corriam para se juntar aos outros, aumentando o número daqueles que a fé carregava em direção ao destino incerto. Cada vez mais próximos, os homens e mulheres de robe, oravam com as vozes também cada vez mais potentes, lembrando as batidas dos tambores de guerra. Seu coração encheu-se ao ser recepcionado por seus companheiros em uma das falanges que, com sorrisos sinceros, demonstravam alegria ao verem mais um juntando-se a eles, que seguiam cantando louvores e glórias. Poderia identificar alguns dos rostos daqueles homens e mulheres nus, mas não sabia precisar de onde. Uma saudade matreira tomou-lhe a alma, dando-lhe força, e não tristeza. E com um som único, todos pararam de marchar.

À frente de todas as falanges, um daqueles seres voadores estava parado, estancando o fluxo de homens, como um curativo num ferimento. Começou a falar em sua língua estranha, diante do silêncio dos homens que tiveram sua marcha interrompida. Antes que pudessem prestar atenção ao que lhes era dito, juntaram-se a ele mais seis anjos, todos de pele prateada, que não portavam as espadas flamejantes, mas trombetas, e as tocaram. O som emitido delas não tinha um ritmo, não lembrava sequer o som de trombetas, parecendo mil vozes de crianças fazendo um chamado. O som preencheu todo o ar, seguido de um silêncio absoluto. Era como se todo o universo tivesse se calado para ouvir o anúncio daqueles instrumentos.

Sem entender muito bem o que estava se passando, ele começou a esfregar os olhos novamente, tentando melhorar a visão do que estava acontecendo à frente. Quando um calor tomou seu corpo e ele logo percebeu que o Sol aumentava de intensidade, cada vez mais. Pareceu-lhe que o Sol se aproximava, atendendo ao chamado das trombetas. Impossível!, ele pensou, rindo de seus próprios pensamentos. Não poderia estar mais enganado, todavia.

Realmente a luz se intensificava por conta de sua aproximação, como se um cometa viesse na velocidade da luz para chocar-se contra a Terra, condenando a todos. O que pôde observar era que, apesar da luz intensificar-se, ela não incomodava sua visão e surgia de um único ponto: um homem. Um homem sobre um cavalo branco, cavalgando no infinito e de onde surgia toda a luz que lhes cobria e lhes dava calor. Este homem de feições humanas ostentava cabelos negros bem aparados, assim como sua barba. Olhava com compaixão a todos os que estavam à sua frente. Onde seu olhar passava, parecia que olhava para cada um dos indivíduos ali presentes. E sem proferir uma única palavra, virou-se com seu cavalo em direção ao horizonte, cavalgando calmamente no ar. Também espantados e maravilhados com aquela visão, todos os homens o seguiram, cantando e orando mais alto que antes. Aquela expressão de compaixão foi trocada por um cenho franzido, assim que vislumbrou o que havia em sua frente.

Mohammed, tentando entender o que se passava, olhou em direção ao horizonte, além da luz daquele homem, e pôde perceber que não muito além dele, o céu começava a escurecer, e podia-se ver claramente o céu dividido em dia e noite, um dos lados com o Sol preso em um turbilhão de nuvens de gafanhotos e o outro com a Lua quase que toda coberta por outra nuvem de insetos asquerosos. Por um momento, ele teve a impressão de que estas nuvens tinham o formato de dragões. Do horizonte infinito, ele pôde ver uma forma gigantesca aproximar-se do homem brilhante; uma forma horrenda e hedionda. Seu desejo naquela hora, foi de correr, mas buscou a força em sua fé e manteve-se ali. Sabia, era o Inimigo. O som de asas sobre a sua cabeça cessou, juntamente com as canções e orações, mas o rufar de asas ao longe, tomou seu lugar. Surgidos do chão, colocam-se ao lado da besta, do seu lado esquerdo, um dragão, e do lado direito, um cão. Ambos com sete cabeças. A tensão pôde ser sentida no ar, com os músculos retesados, parecendo estar soltando pequenos estalos. Mas o desespero toma conta do coração de Mohammed, que tenta com todo o esforço agarrar-se em sua fé, enquanto o homem à frente debatia com aquela besta gigantesca. Ao ver-se cercado, ele apeia de seu cavalo e, num piscar de olhos, toma as mesmas proporções do seu confrontador. Mas ele não o afronta. Apenas o olha e parece colocar argumentos contra aqueles de seu contestador. Seres inúmeros, tão hediondos quanto seu mestre, lambem o que seriam seus lábios e gritam caluniando-o e insultando-o, irrequietos, sobrevoando a área que ocupam, logo atrás da contenda-de-um-homem-só. Mas, alguma coisa acontece. A besta fala algo para o homem e este intensifica seu brilho. Seus cabelos tornam-se brancos e ficam esvoaçantes, mesmo sem vento. Há algo de errado. Sobre sua cabeça, Mohammed ouve gritos dos anjos que tomam posições de ataque e brandindo suas lâminas de fogo, que parecem crepitar à vontade de seus portadores. À sua frente, os seres horríveis passam voando pelos interlocutores, ignorando-os e focando sua atenção nas falanges à sua frente.

Mohammed perde a firmeza de sua mão. O horror que se direciona a ele é indescritível. Uma enorme horda daqueles seres, vêm em sua direção. O sentimento de auto-preservação o faz querer correr. Ele busca força em sua fé, mas ela não se mostra suficiente. Ele se vira para trás, e quando suas pernas começariam a propelir sua fuga, ele vê algo que clareia sua mente. Na primeira fila, daqueles homens com robes brancos, ele vê uma figura de olhos fechados em oração que lhe chama atenção. A pele morena e os cabelos escuros que caem sobre os ombros, lhe trazem lembranças. Lembranças. Lembranças de uma vida. Duas pessoas sentadas em um sofá, conversando, enquanto aquela figura acaricia seus cabelos. Eles riem. Eles se beijam. Os dois abraçados, encostados em um muro da residência daquela figura. Sorrisos, beijos e abraços. Felicidade. Vida. Ele a reconhece, quando ela abre seus olhos, e sem interromper sua oração, ela lhe sorri. Ele aperta a empunhadura de sua cimitarra, enquanto uma lágrima escorre em seu rosto. Ele vira-se sorrindo, e começa a correr na direção de seus adversários, gritando:

— Pela Glóriaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!!


dir. aut. lei nº9610 de 19.02.98

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