Letícia vivia em um mundo de luz e cores. Ela era relativamente nova, para os padrões de sua sociedade. Mas, estava na idade da observação e questionamento.
Todos os dias, Letícia pegava o mesmo ônibus; vermelho e branco. Sempre no mesmo horário e com as mesmas pessoas, mesmo motorista e o mesmo cobrador; que sempre a cumprimentava da mesma forma: - Bom dia! Letícia, sempre entregava o mesmo valor, recebendo o mesmo troco; e sempre agradecia, dizendo um simples obrigado. Sentava-se no mesmo banco; no meio. Ali, ela deixava clara sua opinião: como ela mesmo afirma, ela é uma libertária de extrema direita e conservadora esquerdista. Nunca prestava muita atenção à sua volta, pois era sempre os mesmos assuntos e a mesma paisagem; mas, ela observava.
As pessoas à esquerda do ônibus, cada um de uma cor e inúmeros tons, um vermelho, outro amarelo, verde... Ao lado direito, havia cores também, mas todas fracas, sem brilho; até mesmo, acinzentadas. Ela observava que algumas mulheres, com suas cores pastéis, carregavam os pequeninos no colo. Todos eram multicoloridos, como arco-íris que mudavam suas cores à todo momento, apenas com um leve movimento. Todas as crianças pequenas são assim. Com o tempo, adquirem uma única cor, vívida, que vão desbotando até tornarem-se acinzentadas e opacas. Ela resistia à idéia de que aquelas pessoas – e ela- eram apenas aspectos e reflexos de luz; que se esmaecem com o passar do tempo. Dia ou outro, alguma daquelas pessoas – ou mais de uma – aparecia com a cor mais vibrante, e até mesmo, com toques de outra cor. Ela falava que isso acontecia quando as pessoas haviam visto “o passarinho verde”; como em uma estória que seu avô havia lhe contado, quando era pequena.
Quando estava só, sempre ria de suas conjecturas. Entretanto, morria de medo daquelas pessoas, que perdiam gradativamente suas cores e aparências, para entrar no mundo da pele acinzentada e paletós ou vestidos azul-marinho. Os jovens, apesar de coloridos, começavam pouco a pouco, à usar o mesmo corte de cabelo e as roupas azul-marinho. Pareciam fazer parte de algum sistema, algo imutável; ou que simplesmente, as pessoas não queriam mudar. Assim como ela, muitas pensam ou pensavam assim, mas esses pensamentos vão perdendo lugar para coisas mais práticas.
E dia após o outro, foi-se seguindo na mesma rotina; Letícia pegava o mesmo ônibus, no mesmo ponto, com os mesmos motoristas e cobrador, com as mesmas pessoas, sentados nos mesmos lugares, conversando as mesmas coisas...
Até que, em um destes dias, Letícia percebeu alguém diferente no ônibus: mesmo com lugares sobrando, ficou em pé. Tinha os cabelos assimétricos; com um lado maior que o outro, e caído em um dos olhos. Seus olhos eram inquietos; pareciam buscar algo na imensidão vazia do lado de fora. Sua cor – vermelho -, apesar de já ser única, era tão vívida quanto as cores das crianças. Ele pareceu perceber que estava sendo observado, mas sua única reação foi esboçar um sorriso.
Letícia estava impressionada. Como um camaleão, ele mimetizava-se ao ambiente sem fazer parte dele. O rapaz, equilibrava-se no corredor sobre suas pernas, encostado no banco que estava atrás, seguindo o balançar do ônibus e não segurava nas barras metálicas, para deixar as mãos desocupadas e riscar algo em um bloco de papel. Ele parecia estar concentrado, até que puxou a cordinha para que o ônibus parasse no próximo ponto para que ele, aparentemente, descesse. Letícia perguntou-se por que ele não desceria no terminal da linha; todos desciam ali; mas ela não obteria esta resposta, pois ele já descia o primeiro degrau, estendendo seu braço na direção dela. Ela olhou para o papel e para ele. Ele jogou seu cabelo para trás, descobrindo seus olhos verdes, e sorriu para ela. Ela pegou o papel e o abraçou, como se fosse um rico presente. Em um piscar de olhos, ele já estava na calçada, olhando para dentro do ônibus e sorrindo. Quando, Letícia, iria lhe retribuir o sorriso, o rapaz vermelho foi tomado pelo braço por dois homens de preto. Ele olhou para os dois e se voltou para o ônibus e dar um piscadela para Letícia, enquanto era levado. Ela sentiu um desespero tomar-lhe, mas quando decidiu levantar-se, o ônibus já corria sob a pista negra, deixando-lhe apenas a imagem do rapaz sendo levado e ficando cada vez mais distante.
Ela olhou em volta, mas parecia que as pessoas sequer tivessem notado o que havia acontecido; permaneciam impassíveis. Então, resignada, voltou seu olhar para o papel que jazia em seu peito e novamente surpreendeu-se. Era ela, desenhada com econômicas linhas, e pintada como se o amarelo de seu interior, estivesse vazando sua forma e iluminando ao seu redor. Ela sorriu.
Gustavo pegava o mesmo ônibus, no mesmo ponto, com os mesmos motoristas e cobrador, com as mesmas pessoas, sentados nos mesmos lugares, conversando as mesmas coisas...
Até que, em um destes dias, Gustavo percebeu alguém diferente no ônibus: mesmo com lugares sobrando, ficou em pé. Tinha seus longos cabelos amarelos assimétricos; com formas geométricas, e caído em um dos olhos. Seus olhos eram inquietos; pareciam buscar algo na imensidão vazia do lado de fora. Sua cor – amarelo -, apesar de já ser única, era tão vívida quanto as cores das crianças. Ela pareceu perceber que estava sendo observado, mas sua única reação foi esboçar um sorriso...
dir. aut. lei nº9610 de 19.02.98
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